120 anos de República: Raízes históricas da crise política brasileira
Nas postagens sobre os 120 anos da República no Brasil, trazemos hoje o 1º capítulo (O apriorismo político no Brasil), do livro Raízes históricas da crise política do Brasil, de José Pedro Galvão de Souza. Importante compilação do autor sobre a história política do Brasil.
RAÍZES HISTÓRICAS DA CRISE POLÍTICA BRASILEIRA
CAPÍTULO 1
O APRIORISMO POLÍTICO NO BRASIL
Na verdade, se havia erros no regime pelo qual nos governávamos desde 1822, se se deblaterava contra o poder pessoal do Imperador, se se almejava uma organização política mais descentralizada num regime federativo, o certo é que os sessenta anos do Império haviam sido para nós aquela “grande parada” a que se referia Euclides da Cunha, num contraste com a instabilidade política das repúblicas vizinhas e numa afirmação de prestígio para o Brasil perante o mundo. Mudar tudo, como se mudou, era necessariamente caminhar para o incerto, para o desconhecido. Uma coisa teria sido reformar as instituições, alterá-las para melhor atender às exigências da vida nacional, corrigir o que não funcionasse bem. Outra coisa, o que se preferiu: por tudo abaixo.
Páginas: 13 a 23 e 30 a 38.
[...]
Em face da Constituição então vigente, isto é, a de 1891, escrevia Oliveira Vianna: “Todo o sistema político engenhado na Constituição assenta-se sobre um certo número de presunções, que,entre nós, não tem nem pode ter nenhuma objetividade possível. São presunções de natureza meramente especulativa, inteiramente fora das condições reais da nossa vida coletiva”.
Algazarra republicana
Aliás, é o bastante considerar as alterações da nossa ordem política oriundas da implantação da república para logo nos darmos conta da justeza de uma tal afirmação.
Com efeito, a modificação do regime operada em 1889 e estruturada com a Constituição de 1891 implicou, para o Brasil, passar da monarquia para a república, do Estado unitário para o Estado federal, e ainda do parlamentarismo para o presidencialismo. Ou seja: nova forma de governo, nova forma de Estado, novo sistema de governo.
Que pensar de uma tão substancial mudança? – Ou estávamos inteiramente errados até então, ou daí por diante é que ficamos adotando instituições inadequadas à vida nacional.
Na verdade, se havia erros no regime pelo qual nos governávamos desde 1822, se se deblaterava contra o poder pessoal do Imperador, se se almejava uma organização política mais descentralizada num regime federativo, o certo é que os sessenta anos do Império haviam sido para nós aquela “grande parada” a que se referia Euclides da Cunha, num contraste com a instabilidade política das repúblicas vizinhas e numa afirmação de prestígio para o Brasil perante o mundo. Mudar tudo, como se mudou, era necessariamente caminhar para o incerto, para o desconhecido. Uma coisa teria sido reformar as instituições, alterá-las para melhor atender às exigências da vida nacional, corrigir o que não funcionasse bem. Outra coisa, o que se preferiu: por tudo abaixo.
Ora... natura non facit saltus. E se isto é exato para o mundo físico que nos cerca, não deixa de ter também sua aplicação em se tratando da natureza das relações sociais. Relações que não são necessárias, como as constitutivas das leis físicas, não estão sujeitas ao determinismo, não procedem de uma evolução biológica, mas têm a seu modo leis reguladoras e seguem um processo de formação orgânica manifestado no desenvolvimento histórico dos povos.
República, Federação, e Presidencialismo eram, no Brasil, formulas inspiradas pelo apriorismo político.
Consideramo-las cada uma de per si:
I – República. A questão em torno da melhor forma de governo não tem nenhum sentido prático senão quando examinada perante uma situação concreta. “Monarquia? República? Oh! A balbúrdia ignóbil dos mitos que nada exprimem...” exclamava Antonio Sardinha em face da confusão política de Portugal no seu tempo. O que importa é saber qual o regime mais adequado a cada povo, levando-se em conta seus costumes e suas crenças, sua formação étnica e histórica, seu acondicionamento geopolítico.
Neste sentido, não se pode negar que a república, entre nós, esteve muito longe de ser uma conclusão do estudo da sociologia política brasileira, tendo pelo contrário, constituído um ponto de partida ideológico de bacharéis e homens de letras, entusiasmados com exemplos colhidos em plagas muito distantes das nossas.
A propaganda republicana atingiu as minorias políticas que não encontraram diante de si a oposição séria resultante de uma convicção monárquica, de uma doutrina que pudesse sustentar o trono, ou mesmo de um enraizamento histórico das instituições políticas do Império.
A monarquia era o fruto de uma continuidade histórica. Após nos termos separado politicamente de Portugal, o regime se mantinha dadas aquelas circunstâncias da vinda de D. João VI para o Brasil, com a transferência da Corte, e da presença do Príncipe Regente, colocando-se à frente dos patriotas brasileiros, revoltados contra as exigências provocantes da Constituinte de Lisboa.
Três séculos de regime monárquico haviam feito o Brasil. A nossa integridade territorial, contrastando com a fragmentação operada na América espanhola depois da independência, resultava da força catalisadora da Coroa. Entre os elementos que contribuíram para tão notável resultado, aponta Pandiá Calógeras, em primeiro lugar, a vinda da Família Real à América, e a elevação da antiga colônia a reino. As tradições patriarcais da sociedade brasileira coadunavam-se com o regime. A inexistência de uma opinião pública organizada e a índole turbulenta das populações, por outro lado afeitas ao gosto pela autoridade e fáceis de governar desde que esta se visse cercada de acatamento e prestígio, tudo isso tornava pouco recomendável para o Brasil a forma republicana. A instabilidade política, as lutas, as incertezas, a ameaça de desagregação, no período regencial, que fora uma antecipação da república, valiam por uma grande advertência.
Os propagandistas da República não nos deixaram uma só obra em que tivessem justificado de forma convincente, à vista da situação do país, as vantagens de uma alteração na forma de governo. Rui Barbosa, batendo-se pela Federação, reclamava-a “com ou sem Coroa”, deslocando a questão da forma de governo para a da forma de Estado, quando na verdade a mudança desta não era incompatível com a manutenção daquela.
Compreende-se, assim sendo, que a minoria republicana, pequena mais ativa, - segundo pondera Calógeras, - tivesse atacado o instituto monárquico com armas forjadas pelos próprios defensores da forma imperial. Isto explica que fosse recrutar os seus correligionários entre os fazendeiros descontentes com a abolição, nos meios militares fermentados pela indisciplina e mal-afeiçoados à dinastia, e junto ao clero, que conservava uma recordação bem viva da questão dos Bispos. O papel do elemento militar na queda da monarquia foi decisivo, e não se deve pensar que a abolição e a questão religiosa tenham sido causa da república.³ Mas o fato é que a irradiação da propaganda republicana, a não ser entre os estudantes das Academias de Direito, os “cadetes filósofos” de Benjamim Constant e, segundo o depoimento de Afonso Celso, os alunos de alguns Seminários eclesiásticos, só encontrava receptividade procurando somar aqueles descontentamentos.
Argumentação com fundo histórico ou doutrinário, em vão procuramos encontrar nos escritos da propaganda. Exploram-se fraquezas do governo e os ressentimentos de algumas classes. O Manifesto de 1870, marco inicial do movimento republicano, é de uma indigência total em matérias de idéias políticas.
De que se compunha o libelo contra o antigo regime e o Velho monarca? Responde Oliveira Vianna: “Das velhas acusações contra o ‘poder pessoal’, da grita dos liberais e dos conservadores caídos em desgraça, do ressentimento dos ministros postos pela Coroa no olha da rua...” E, além disso, o fluxo oratório. Não se pregava, declamava-se. O Conde Afonso Celso, descrevendo a eloqüência de Campos Sales, diz que este seu colega de Parlamento, nos discursos, pronunciava a palavra República com muitos rr e a palavra Povo com muitos oo, “arrastando a língua, esforçando-se por emprestar entonações trágicas e misteriosas aos lugares mais comuns”.
Acrescente-se o pequeno grupo de positivistas, enfeitiçados pela “Religião da Humanidade”, e ter-se-á o quadro completo dos doutrinadores do novo regime.
Para os jovens estudantes, a república surgiria como alguma coisa diferente, com o sabor da novidade, que muitos desejavam experimentar sem ter feito reflexão seria sobre o assunto, mesmo por não terem elementos com que fazê-la. O direito constitucional entre nós era ensinado segundo a cartilha da Revolução Francesa. É natural que os seus leitores inexperientes quisessem ver também no Brasil o barrete frígio substituir uma coroa que lhes parecia fora de moda, sobretudo no continente americano, onde não existia nenhuma outra.
Surgiu então o slogan de que o Brasil não podia ser uma exceção na América. Para isto contribuía fortemente o exemplo dos Estados Unidos, cujo imperialismo, denunciado nas páginas imortais de A Ilusão Americana, não se fazia sentir apenas no terreno econômico.
Tudo isto mostra o apriorismo político da república. As idéias da Revolução de 1789, as instituições norte-americanas, a filosofia de Augusto Comte, finalmente o exemplo de outras nações, eis as fontes do ideal republicano no Brasil.
Quando este último ponto, não nos dávamos conta de que a nossa força, o nosso prestígio, a nossa superioridade estava exatamente no fato de sermos uma exceção. Desde os primeiros tempos da independência, e até antes, os acontecimentos históricos vinham mostrando que a Nação brasileira era predestinada a uma situação toda especial nas Américas. Uma tal peculiaridade decorrida das condições próprias da colonização portuguesa, divergindo em parte da espanhola e muito mais ainda da inglesa. A nossa língua era diferente; a fusão das raças aqui se operava contrastando com a extirpação violenta do elemento indígena ou a segregação racial do negro, como nos Estados Unidos e sem os choques semelhantes aos havidos com astecas e incas; ao contrário da América inglesa, onde diversas colônias separadas se reuniram posteriormente numa Federação, e da América espanhola, onde quatro grandes vice-reinados se dividiram em pequenas repúblicas, nós constituímos desde os primórdios da colonização até à fundação do Império um Estado unitário, o “Estado do Brasil” segundo a designação oficial, cuja integridade territorial a monarquia assegurava. Só o Brasil recebera um monarca vindo da Europa para aqui instalar a capital do seu Império; só o Brasil, de entre as nações luso-americanas, se representava no Congresso de Viena, com soberania, que já tinha desde 1815, quando elevado a Reino Unido; só o Brasil conseguia manter, na América do Sul, por mais de sessenta anos, a mesma Constituição, enquanto seu direito privado continuava a reger-se pelas ordenações filipinas, que durariam até 1916.
Rui Barbosa: O republicano arrependido
A monarquia, no Brasil, não podia continuar por ser exceção na América... Por esta lógica, devíamos também deixar de falar o português.
O ideal republicano, acalentado prazerosamente por acadêmicos e cadetes, teria desde logo uma realização cheia de amarguras. E vimos então que, depois das primeiras decepções, ou ao termo de muitas provas e vãs tentativas para depurá-lo, os idealistas da primeira hora, os republicanos históricos, acabavam por confessar: - “Não era esta República dos meus sonhos!”
Um sonho, um devaneio, um apriorismo, eis o que foi o ideal republicano no Brasil.
Não admira, diante disso, que, uma vez proclamado o novo regime, o que de mais valioso e substancial os antigos propagandistas vieram a realizar depois – como ocorreu com Campos Sales – não tenha sido “devido à obediência dos dogmas e princípios contidos na farfalhagem doutrinaria do Manifesto de 1870; ao contrário só o realizaram justamente porque, na prática, conseguiram libertar-se deles”. O ideal republicano, acalentado prazerosamente por acadêmicos e cadetes, teria desde logo uma realização cheia de amarguras. E vimos então que, depois das primeiras decepções, ou ao termo de muitas provas e vãs tentativas para depurá-lo, os idealistas da primeira hora, os republicanos históricos, acabavam por confessar: - “Não era esta República dos meus sonhos!”4
As deturpações freqüentes do regime justificavam as queixas e os arrependimentos dos “históricos”. O poder pessoal do monarca passava a ser exercido pelo Presidente da República, quando não por homens de influência incontrastável, como Pinheiro Machado, o caudilhismo gaúcho que fazia os presidentes. As atas falsas e as eleições a bico de pena tiveram toda a autenticidade do regime. E a Constituição de 24 de fevereiro de 1891, na perfeição de sua técnica jurídica e no brilho de sua pureza vernacular, ficava reduzida a objeto de declamações nas cátedras de direito constitucional, sem nenhuma significação prática para a vida política brasileira. O grande mal estava em não se aplicar a Constituição, diziam os que ainda acreditavam nela, sem se darem conta da sua radical impraticabilidade no Brasil.
Enquanto constitucionalistas imbuídos de apriorismo, eivados de formalismo jurídico e alheios aos problemas nacionais, ficavam aferrados à Constituição, um homem público dotado do sentido prático, e que haveria de ser um dos iniciadores da sociologia política entre nós, tirava de sua experiência no governo uma lição frutuosa, que transmitia aos seus compatrícios.
Era Alberto Torres. Tendo ocupado a presidência do Estado do Rio de Janeiro de 1898 a 1900, escrevia, em prefácio ao seu livro A Organização Nacional: “Minha confiança na Constituição de 24 de fevereiro era, então, completa”. E logo a seguir: “Ao passar, em 31 de dezembro de 1900, o governo da terra fluminense ao meu sucessor, o General Quintino Bocaiúva, já não podia ser tão firme – desiludida, como fora, pelos fatos – a minha confiança no regime político que havíamos adotado; e, quando no decurso de alguns anos na magistratura, vim a fazer trato mais íntimo com a Constituição da República, fixou-se em mim a convicção da sua absoluta impraticabilidade”.
Dizia que a Constituição era “uma carta de princípios exóticos”, uma “coleção de preceitos sem assento na vida real”.
E ponderava ainda: “A Constituição de um país é sua lei orgânica, o que significa que deve ser o conjunto das normas resultantes a sua própria natureza, destinadas a reger seu funcionamento, espontaneamente, como se exteriorizassem as próprias manifestações da maneira de ser e de viver do organismo político”.
E por isto que se chama “Constituição”. A nossa lei fundamental não é uma “Constituição”, é um estatuto doutrinário, composto de transplantações jurídicas alheias.
“Seu grande modelo foi a Constituição dos Estados Unidos. Sobre o arcabouço do tipo presidencial e federativo dos americanos justapuseram os constituintes princípios colhidos, aqui e acolá, no direito público de outros países, principalmente nas teorias publicistas franceses; e a este acervo de doutrinas deram a forma sistemática, metódica, regulamentada, do estilo legislativo próprio do nosso espírito”.
O texto encaminhado para ser discutido na primeira Constituinte republicana tinha a recomendá-lo o prestígio de Rui Barbosa. Leitor assíduo dos jurisconsultos anglo-saxônicos, que mais tarde citaria freqüentemente ao fazer exegese da Constituição brasileira, e perfeito dominador da língua vernácula, Rui, entretanto, desconhecia o nosso vernáculo sociológico. O anteprojeto da Constituição, cujos artigos ia ler diariamente ao Marechal Deodoro à medida em que iam sendo elaborados, era uma peça primorosa quanto ao estilo legislativo e quanto ao rigor da técnica jurídica, do ponto de vista meramente formal, porem numa completa dissonância em relação a sociedade para a qual se destinava.
A Constituição, com efeito, é uma lei orgânica. Têm as sociedades a sua constituição, isto é, no dizer do Alberto Torres, a sua “maneira de ser e de viver”, assim como os organismos; estes de conformidade com as leis da biologia, aquelas segundo o processo histórico.
Na sua formação, as nações se diferenciam entre si por elementos diversos incluídos na tradição de cada uma. Sendo o Estado a Nação juridicamente organizada, nesta organização deve naturalmente refletir-se o substrato da tradição, isto é, a expressão da realidade social e da maneira de ser de cada povo.
Por outras palavras, a constituição jurídica do Estado deve corresponder à constituição histórica da nacionalidade. Do contrário será impraticável, se não mesmo utópica, fonte permanente de tensões e de conflitos.
A República vinha de um apriorismo político e se estruturava mediante uma constituição apriorística. Vejamos a seguir como os dois princípios que, no dizer de Alberto Torres, lhe serviram de arcabouço – a Federação e o presidencialismo – nasceram, entre nós, padecendo do mesmo vício de origem.
II. – Federação. Muito se tem dito acerca da vocação federalista do Brasil. Chegam alguns a invocar o exemplo das capitanias hereditárias, sistema de divisão da terra para facilitar a colonização e administração, como um indício daquela vocação despontando nos primórdios da nacionalidade. Evidentemente o exemplo é mal escolhido, pois, dado o fracasso do sistema, logo substituído pelo regime unitário do Governo Geral, seria antes um argumento contrario à tese dos adeptos da Federação.
Querem alguns ver no ímpeto com que se marchava para a idéia federativa um dos elementos que favoreceram a república. E lembram o caso de Rui: a Federação “com ou sem a Coroa”.
Na verdade, os federalistas do tempo do Ato Adicional e, maias tarde, os da propaganda republicana laboravam num equívoco. Sua intenção era combater a centralização monárquica e fazer vingar um programa descentralizador no plano político-administrativo. Julgaram então que, para isto, seria preciso aplicar, entre nós, o self-government dos anglo-saxônios, ou mesmo a teoria do Estado federal como elabora no direito constitucional norte-americano.
Não souberam distinguir entre o federalismo enquanto principio de filosofia política e a mesma idéia enquanto expressão de uma forma de Estado. E além disso, quiseram aplicar o ideal do self-government e o esquema federativo a regiões perfeitamente diferenciadas de um país imenso, sem levarem em conta a total incapacidade de certas populações para desfrutarem de uma autonomia, que outras, as populações mais desenvolvidas do sul, podiam legitimamente reclamar.
Naquelas províncias nordestinas, não sabemos dizer-se em estado semifeudal ou semitribal, que sentido podia ter a Federação e a igualdade dos Estados? Perante uma sociedade a praticar ainda a justiça privada para resolver os seus conflitos, como falar em descentralização judiciária e processual?
[...]
E vejamos o que a respeito escrevia Rui Barbosa, a 24 de fevereiro de 1898, no citado artigo: “Certamente há criações que não se imitam, que não se transportam. Não basta a vontade e a ciência, para obter, noutro país, a reprodução de um Senado como o americano. Não vale a inteligência do modelo, nem a arte da adaptação, para transplantar dos Estados Unidos o seu Supremo Tribunal. Instituições destas não se alcançam pela habilidade plástica dos legisladores. Dependem eminentemente da idoneidade dos povos, como do caráter das raças. E sem elas bem duvidoso é que a nossa Constituição tenha o direito de pretender a afinidade, que supõe, com a obra de Washington e seus colaboradores”.
Por fim, acabava descrevendo a situação lastimável a que, em tão poucos anos, o regime federativo havia conduzido o Brasil: “Em vez do Governo dos Estados por si mesmos, ganhamos a tiranização dos Estados pelos Governadores: a emancipação absoluta destes, com a absoluta sujeição daqueles a um mecanismo de pressão incomparavelmente mais duro que o da centralização antiga sobre as províncias de outrora. Dir-se-ia que desta inversão nos produtos do molde federativo toca a responsabilidade à nossa ausência de liberdade eleitoral. Mas já não aproveita a mesma escusa à Constituição republicana, pelo que respeita ao outro interesse fundamental, ao máximo entre os dois interesses fundamentais do seu plano: a vitalidade, a independência, a soberania da União”.
“Nesta parte o artefato da Assembléia de 1890 se mostra deplorável. Não se tratou de constituir a União, e preservá-la, mas de extenuar, de a inanir, de a impossibilitar. Imaginou-se que uma aliança ostensiva de interesses centrífugos, sem uma poderosa lei centrípeta, que os domine, poderia representar e manter a nacionalidade. Os frutos aí estão, rápidos e mortais, na impotência governativa e na miséria orgânica da federação”. 7
E Rui Barbosa desfraldava a bandeira do revisionismo, que depois dele muitos tornaram a agitar. Só em 1926 veio uma reforma da Constituição, sem grandes conseqüências. Depois, foi a Carta Magna de 1891 destruída pela revolução de 30. Os novos Constituintes, concluindo seus trabalhos em 16 de junho de 1934, não apresentaram uma idéia original, não foram capazes de tirar lições dos quarenta anos da “república velha”, continuaram a repetir mestres estrangeiros e a reproduzir instituições de outros povos.
Guardavam o mesmo modelo republicano, federalista e presidencialista, importado dos Estados Unidos, acrescendo-lhes algumas novidades da época, vindas da Constituição alemã de Weimar ou das experiências do sindicalismo europeu!
Quanto à Federação, continuavam a repetir alguns lugares comuns, que não se davam ao trabalho de examinar a fundo. Tinham-na como um imperativo da nossa história, que mal conheciam e na qual não estavam habilitados a descobrir uma fórmula descentralizadora possibilitando a conciliação entre liberdades locais e a unidade nacional.
III. – Presidencialismo. Parlamentarismo e presidencialismo têm sido as modalidades mais comuns de democracia representativa nos povos modernos. O parlamentarismo, nas monarquias constitucionais e nas repúblicas; o presidencialismo, sistema tipicamente republicano. Nota-se que a monarquia constitucional de tipo parlamentarista não é a única forma de monarquia limitada, mas desde que entrou a predominar o liberalismo não mais se concebeu outra, e o parlamentarismo monárquico passou a ser, para muitos desconhecedores da história e falhos de imaginação, a saída necessária para evitar o absolutismo.
Teve o sistema parlamentar por berço a Inglaterra, encontrando nesse país as condições naturais para o seu perfeito funcionamento: a existência de uma opinião pública organizada, partidos políticos com caráter autenticamente representativo de correntes da opinião, plena isenção do chefe de Estado ante as competições parlamentares, sem falar na índole do povo inglês e no fair play com que os britânicos estão habituados a discutir e a participar dos debates das mais tormentosas questões sem perder a cabeça.
Nos países latinos, o parlamentarismo, sempre que aplicado, foi um fermento de instabilidade política, de crises freqüentes, de enfraquecimento de poder, corrupção e anarquia. Portugal e Espanha são exemplos bem frisantes, e a reforma constitucional promovida na França pelo General de Gaulle não teve outro escopo senão o de livrar a Nação das conseqüências fatais a que arrastava o regime parlamentar.
Em face de tão desastrosas experiências, não deixa de ser um interessante contraste o espetáculo apresentado pelo parlamentarismo no Império do Brasil, quando tivemos um clima de ordem e estabilidade política não alcançado pela república.
Durante a monarquia, adotamos o sistema inglês de governo, e com o regime implantado a 15 de novembro passamos ao sistema americano. A ambos se sobrepôs uma realidade da nossa tradição política, vinda dos tempos dos Governadores gerais e dos Capitães Generais das capitanias ou províncias: o poder pessoal. Esta mesma foi a realidade dos senhores de engenho e fazendeiros de influência política, ou ainda a dos chefes de partido, - entre os quais avulta, na república, Pinheiro Machado, - dos coronéis da roça e cabos eleitorais. 8
Deu-se na monarquia um caso curioso, em que o apriorismo se adaptou às condições reais do país. A Constituição de 1824 sofreu uma visível influência do liberalismo doutrinário, que deu o tom ideológico à Monarquia de Julho na França. Dos constitucionalistas franceses daquela época recebemos a idéia do pouvoir Royal, preconizada por Clermont Tonnerre e Benjamim Constant. Este último concebia, ao lado dos três poderes clássicos. Legislativo, Executivo e Judiciário, o poder neutro na pessoa do chefe de Estado. A Constituição do Império do Brasil acolhia a sugestão, inscrevendo esse poder, com o título de Poder Moderador, e definindo-o, no seu artigo 98, como a “chave de toda a organização política”.
Fundiram-se assim as duas idéias: o poder neutro, ou moderador, e o poder pessoal da nossa tradição política. Exercidas as faculdades inerentes a esse poder por um monarca de caráter impoluto e de feição efetivamente moderada e liberal, como D. Pedro II, tornou-se essa peça, tão importante na sistemática daquela Constituição, a válvula de escape pela qual ficamos livres da anarquia parlamentar sem cair nos abusos do poder discricionário.
Copiamos o parlamentarismo britânico deturpando-o... mas para nosso bem! O Imperador controlava a política nacional, segundo o famoso sorites de Nabuco. 9 E vinham exatamente daí as invectivas de Ferreira Vianna e outros contra o poder pessoal de D. Pedro. Poder, tornemos a dizer, bem moderado e liberal, que protegia a propaganda republicana e acabou, no seu excesso de liberalismo, por levar o Trono à ruína.
Com a república, o presidencialismo de tipo norte-americano veio substituir o sistema anterior. Ora, assim como o parlamentarismo encontrou na Inglaterra o seu habitat nativo e natural, da mesma forma o sistema presidencial surgiu nos Estados Unidos das condições do meio e da formação histórica. Os notáveis lideres que participaram da Convenção da Filadélfia, os autores da Constituição de 1787, os redatores do The Fedaralist, estavam impregnados do espírito prático e do conhecimento das tradições de sua gente, como não se deu, entre nós, nem com Rui Barbosa, nem com os constituintes de 1890.
O presidencialismo, para lograr bom êxito, suponha também certas condições indispensáveis, e de um modo especial a concepção dos três poderes, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, que a Constituição brasileira de 24 de fevereiro declarava serem “harmônicos e independentes entre si”, mas cuja independência e harmonia nunca passaram de um mero enunciado legal.
Dessas e de outras ficções, temos vivido no Brasil, em matéria de direito constitucional. No concernente ao presidencialismo, vimos desde logo a tendência para afirmação do poder do Presidente da República, avassalando o Congresso com uma ampla liberdade de movimentos que, nos Estados Unidos, o efetivo controle dos atos do Poder Executivo pelo Judiciário, anulando-os quando inconstitucionais, não permitiria.
Não vamos negar que também naquele país o Executivo teve, sobretudo neste últimos tempos, acrescidos os seus poderes, tornando-se famosa a luta de Franklin Roosevelt com a Suprema Corte, paulatinamente sujeita aos planos reformistas do presidente. Mas isto se foi fazendo sempre do esquema constitucional. Se Roosevelt conseguiu os seus intentos foi graças às suas reeleições, permitindo-lhe renovar aquele tribunal com elementos que lhe eram afeiçoados.
Entre nós, pelo contrário, a Constituição era freqüentemente violada desde que causasse incômodos à política presidencial. Um Ministro da Justiça podia dizer, com ironia, que ela se comparava a um charuto que atiramos fora quando está para nos queimar os lábios...
Quando da renúncia do Presidente Jânio Quadros, pôs-se a questão relativa a esses dois sistemas de governo, questão que o deputado Raul Pilla desde alguns anos vinha agitando com persistência.
Parlamentarismo ou presidencialismo?
Republicanos sinceros confessavam-se desiludidos deste último. Queriam tentar a volta ao sistema parlamentar para ver se nele encontrariam uma solução para nossa crise política. Afinal, as circunstâncias que rodearam a ascensão ao poder do Sr. João Goulart vieram fazê-los satisfazer aquilo que tanto almejavam. Surgiu o parlamentarismo, não como vitória dos idealistas que por ele se batiam, mas como arranjo político dos deputados que não queriam perder os seus lugares.
Não vamos aqui renovar as discussões a respeito, ou examinar os argumentos de uns e de outros, e muito menos analisar a pantomima política que durou de setembro de 1961 até janeiro de 1963. Consideremos apenas como foram completamente falseados os dados do problema, sempre em função do apriorismo que nos tem perseguido e que se casa, por vezes, com o oportunismo dos políticos profissionais, tal qual se verificou naquela solução de emergência durante a crise de agosto. Apelava-se para o parlamentarismo como meio de impedir os excessos do poder pessoal, manifestados pelo Presidente renunciante, especialmente nos domínios das relações internacionais. Mais ainda parecia reforçado este apelo diante da situação em que se encontrava o Vice-presidente, cuja investidura, em vista da atuação política que vinha tendo, foi declarada, pelos três Ministros militares, de absoluta inconveniência para a segurança nacional.
Ora, se o regime vigente dava ensejos a que poder do Chefe de Estado descambasse para as arbitrariedades, e se o perigo em foco, ao se tratar da investidura do seu substituto legal, decorria sobretudo da conjuntura determinada pela crise internacional, o remédio não estava na mudança do sistema de governo e sim numa nova e melhor regulamentação de matéria já disciplinada pela Constituição, no sentido de impedir que a política exterior ficasse à mercê do arbítrio presidencial e de dar outra organização e maior eficácia ao Conselho de Segurança Nacional. 10
Nisso não se pensou, enquanto a Constituição era reformada mediante a panacéia das fórmulas apriorísticas: do “presidencialismo” para “parlamentarismo”, - o qual, não só mão oferecia obstáculo algum à ação pessoal do Presidente da República, mas ainda permitia a política externa do seu antecessor fosse lavada mais avante, no mesmo rumo vinha seguindo e que foi um dos principais motivos determinantes da crise de agosto, - e depois, novamente, do “parlamentarismo” para o “presidencialismo”.
Fórmulas, palavras, ficções de legalidade, encobrindo uma realidade mais profunda e desfigurando, numa falsa legalidade, a legitimidade do direito histórico nacional.
Eis o que tem sido o apriorismo político no Brasil. Se na monarquia ele teve a contrabalançá-lo aquela magnífica escola de homens públicos sempre recorda com louvores, e o enraizamento de certas instituições que se mantinham, salvaguardando, através da continuidade monárquica e dinástica, os interesses nacionais, na república seus efeitos se tornaram mais perturbadores e sensíveis.
Mas o fato é que vem de longe esse vicio, vem da origem do nosso constitucionalismo, que tem sido a contrafação do nosso direito histórico.
E, ainda hoje, podemos repetir o que dizia Pontes de Miranda, em 1924, respondendo ao citado inquérito: “Quando se criou a monarquia constitucional, impôs-se à Nação a exterioridade idealista de pomposa mitologia social. Viveram-se quase três quartos do século dentro disto, a levar à cena, no trópico, a peça grave e superficialmente educadora do parlamentarismo inglês: gastamos no aprendizado de tal mentira os homens que conseguimos formar durante a vida menos hipócrita da colônia. Depois, quando já não podíamos suportar o burlesco do constitucionalismo monárquico, improvisamos a República, que armou na praça pública de nossa civilização incipiente e heterogênea o vistoso coreto das instituições norte-americanas, enlaivadas de utopia francesa. E o resultado é o que aí está”.
O exame atento das raízes históricas de nossa crise política deve fazer-nos refletir sobre uma grande lacuna a ser preenchida na vida brasileira. Falta-nos um pensamento político nacional, não porque ele não exista, mas porque ainda não fomos capazes de estruturar em função dele as nossas instituições. Estamos sempre a procurar um caminho sem conseguir encontrá-lo. Sempre a olhar para fora: ontem, para a França, a Inglaterra, os Estados Unidos; hoje, para a Rússia, a China, Cuba... Obstinados em aplicar, a todo o custo, as fórmulas da democracia anglo-saxônia, em vista dos sucessivos fracassos somos levados, por vezes, a cair numa espécie de complexo de inferioridade, julgando que ainda não estamos preparados para o regime democrático. Quando toda a questão está em sermos nós mesmos, em retomarmos os nossos caminhos em afirmarmos perante o mundo uma originalidade criadora.
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3. Em O Ocaso do Império, Oliveira Vianna mostrou como o ideal republicano não foi o ideal das classes conservadoras e rurais, mas negócio de gente da cidade, e especialmente da mocidade estudantil. Um ano antes de sua proclamação, o deputado mineiro Sebastião Mascarenhas afirmava, em discurso perante seus pares, que a expansão desse ideal não vinha de um despeito por causa do 13 de maio, tanto assim que a maioria dos republicanos se encontrava nas cidades e vilas.
4. Oliveira Vianna, O Ocaso do Império, 2º Ed., Cia. Melhoramentos de São Paulo, p. 119.
7. Em outro artigo, Governadores Soberanos, publicado pela Imprensa de 1º de dezembro de 1898, escrevia ainda Rui: “Como todos os imitadores de originalidade alheia, não podendo acompanhar os Estados Unidos na verdade das suas instituições, caprichamos em ultrapassá-los na exageração das suas formas. Não sabendo rivalizá-las nas virtudes, excedemo-los nos erros. Desmesuramos o quinhão dos Estados, para entregar os Estados aos Governadores. Trocamos os príncipes de sangue pelos príncipes de batota eleitoral”.
8. Vejam-se a respeito os ensinamentos de Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, Rio de Janeiro, 1948, e Costa porto, Pinheiro Machado e seu tempo, Livraria José Olympio, 1951. Ruísmo e pinheirismo foram as duas constantes da primeira república, ou seja: o idealismo apriorístico, o bachareslismo teórico, que gerou a mistificação da democracia, em contraste como realismo das Comissões diretoras, dos coronéis e das eleições pré-fabricadas.
9. Assim dizia o Senador Nabuco de Araújo: “O Poder Moderador pode chamar quem quiser para organizar Ministérios; esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria”.
10. Quanto à política exterior, cumpre lembrar a missão constitucional do Senado, que deveria ser, a respeito, mas valorizada.
SOUZA, José Pedro Galvão de. Raízes históricas da crise política no Brasil. Editora Vozes, Petrópolis – 1965, cap. 1 – O apriorismo político no Brasil, pp. 13 a 23 e 30 a 38.
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Nota do blog:
O autor: José Pedro Galvão de Souza naceu em São Paulo, no dia 6 de janeiro de 1912.
Filósofo do direito, foi professor universitário e fundador da Faculadde paulista de Direito, que foi incorporada a PUC de São Paulo, sendo que foi vice-reitor de ambas instituições. Lecionou em diversas Universidades, Centros Universitários e Faculdades, entre elas pode-se citar a Faculté Libre de Philosophie Comparée, de Paris, onde fundou um centro de estudos na área do Direito Natural.
João Pedro Galvão de Souza foi membro de diversos institutos sociais e culturais. Foi fundador e co-editor de diversas revistas, entre elas a Reconquista, de São Paulo e Scientia Iuridica, de Portugal. Publicou diversos livros.
Morreu em 31 de maio de 1992, em São Paulo.
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