Habeas Corpus indeferido a Dom Luiz de Orleans e Bragança, O Príncipe Perfeito (1908)
HABEAS CORPUS Nº 2.437
Paciente: D. Luiz de Orleans e Bragança
ACÓRDÃO
Vistos e relatados os autos, dos quais consta que o Advogado Dr. José da Silva Costa pede uma ordem de habeas corpus preventivo em favor de D. Luiz de Orleans e Bragança, ex-Príncipe da Casa Imperial do Brasil, por lhe constar que o Governo resolvera proibir-lhe o desembarque em território brasileiro, ao passar a manhã, a bordo do paquete Amazone, pelo porto desta Capital; e considerando:
Que, ante a deficiência que, em matéria de fato, apresenta a petição, fundada na mera alegação de notícia, cuja a origem nem sequer é indicada, e sendo certo que as informações da imprensa diária acerca de tal resolução do Governo são até contraditórias, caso seria de se pedirem esclarecimentos, como é requerido no final da petição; mas, atendendo a que, quando houvesse certeza do constrangimento de que se diz ameaçado o paciente, isto é, quando fosse certo e provado que o Governo lhe proibisse o desembarque em território nacional, não constituiria tal ato constrangimento ilegal, pois seria, ao em vez disso, estrito cumprimento de lei vigente, qual o Decreto nº 78 A, de 21 de Dezembro do 1889, que, no art. 1º, baniu do território brasileiro o Sr. D. Pedro de Alcântara, e com ele a sua família;
Que tal banimento não se entende abrogado pela superveniência da Constituição da República, nem quando, no art. 72, parágrafo 10, assegura a qualquer, em tempo de paz, o direito de entrar no território nacional ou dele sair, com sua fortuna e bens, quando e como lhe convier, independentemente de passaporte, pois tal direito sofre as naturais restrições das leis ordinárias em vigor; assim é que não o podem exercer os condenados a penas restritivas da liberdade, ou os interditos por direito civil; nem a isto se opõe a igualdade perante a lei, afiançada no parágrafo 2º do mesmo artigo constitucional; nem quando a mesma lei básica, no referido artigo, parágrafo 20, declara abolida a pena de galés e a de banimento judicial, pois o banimento em questão nem é pena, nem foi imposto por sentença judicial, sendo, sim, ato político, de alta polícia, que está fora das normas constitucionais traçadas para o futuro;
Que infundado é o argumento a pari, que se pretende inferir da disposição do mesmo decreto de 1889, acerca dos bens da família destronizada, pois inexato é que se hajam confiscado, havendo apenas o Governo da Revolução vedado que tal família possuísse bens de raiz no Brasil, devendo liquidar no prazo de dois anos os bens dessa espécie que aqui possuísse, o que, aliás, nunca se cumpriu e era legítimo corolário do banimento.
Que na frase “sua família”, do citado art. 1º do Decreto nº 78 A, de 1889, se incluem os netos do ex-Imperador, até no sentido do direito civil, e mormente no sentido político, que é o do decreto, equivalendo, em tal sentido “família” a “dinastia”, e o que se teve em vista foi atingir a quantos no futuro pudessem ser pretendentes à sonhada sucessão no trono, que sonhassem restaurar, podendo com sua presença no território nacional ser causa ou ocasião de perturbações da ordem pública;
Que tanto é lei vigente o art. 1º do Decreto nº 78 A, de 21 de dezembro de 1889, ainda depois da Constituição, que esta, havendo, no art. 7º das Disposições Transitórias, derrogado aquele decreto, na parte de que trata o respectivo art. 3º, não se refere às disposições dos dois artigos antecedentes, que, assim, se hão de considerar em inteiro vigor:
Acordam negar, desde já, a impetrada ordem de habeas corpus preventivo, pagas pelo impetrante as custas.
- Supremo Tribunal Federal, 11 de maio de 1907 - Piza e Almeida, Presidente - Lucio de Mendonça - Pindahiba de Mattos - André Cavalcanti – Manoel Murtinho - A. A. Cardoso de Castro - M. Espinola - Epitácio Pessoa - G. Natal - Ribeiro de Almeida - Amaro Cavalcanti, vencido.
ALBERTO TORRES, vencido, assegurando, no art. 72, “a brasileiros e estrangeiros residentes no país, a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade e segurança individual”, a Constituição enumera nos 31 parágrafos deste artigo, uma série de declarações de direitos e garantias, acrescentando no art. 78:
“A especificação das garantias e direitos expressos na Constituição não exclue outras garantias e direitos não enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos princípios que consigna”.
Entre as garantias expressamente consignadas no artigo 72, consagra o § 10 a seguinte:
“Em tempo de paz, qualquer pode entrar no território nacional ou dele sair com a sua fortuna e bens, quando e como lhe convier, independentemente de passaporte”.
Não fosse este parágrafo explicitamente consignado no artigo constitucional, e ninguém teria dúvida em considerar o direito que ele menciona como compreendido na fórmula ampla do princípio deste artigo: “a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade e segurança”, direitos entre os quais tem precedência a liberdade física, liberdade elementar, de que a locomoção - “jus manendi, ambulandi, eundi altro citroque” - é a modalidade ativa.
Temos, pois, o princípio da liberdade de locomoção duas vezes consagrado, uma por definição e outra por compreensão e, depois ratificado na generalidade do artigo 78, que dilata a inteligência dos direitos do indivíduo às mais remotas aplicações do liberalismo e da forma republicana.
A quem é assegurado este direito?
Di-lo a Constituição, no art. 72 “a brasileiros e a estrangeiros residentes no país”.
Indistintamente, sem discriminar, sem ressalvar indivíduos, famílias, grupos?
Acrescenta a Constituição, no parágrafo 2:
“Todos são iguais perante a lei.
A república não admite privilégio de nascimento, desconhece foros de nobreza, e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho”.
Só um direito para todos os indivíduos; nenhum privilégio, nenhuma distinção, nenhuma regalia, mas também, reciprocamente, nenhum ônus especial, nenhuma restrição ou exclusão do direito comum, do gozo e fruição das liberdades legais: “todos são iguais perante a lei”.
A República não inverteu a hierarquia na sociedade, nivelou a sociedade.
Isto posto, todos os brasileiros, quaisquer que sejam a sua origem, o seu passado, as suas crenças, as suas pretensões, têm o direito de entrar em tempo de paz no território nacional e dele sair sem necessidade de passaporte.
Perante o Tribunal compareceu, mais ou menos, às três horas da tarde, de 11 do corrente, um cidadão conspícuo, respeitável advogado do nosso foro, e alegou que o brasileiro Dom Luiz de Orleans e Bragança, embarcado a bordo do Amazone, em demanda do nosso porto, onde devia chegar no dia seguinte, estava ameaçado pelo Governo do constrangimento de ser impedido de vir à terra; urgia o caso; em menos de 24 horas entraria no porto o vapor; o impetrante não pudera, na urgência do tempo, instruir o seu pedido. A documentação deveria tender a firmar dois fatos: a qualidade de brasileiro do paciente e a existência da ameaça de constrangimento. Quanto ao primeiro, a escassez de tempo justificava a falta; quanto ao segundo, se não bastava a notoriedade, o meio de verificar era precisamente, assim o reconhece o acórdão, o que a lei indica como instrução do processo de habeas corpus: conceder a ordem para esclarecimentos, tomadas as providências necessárias para que a deliberação definitiva pudesse ser dada em tempo de tornar efetivo o direito.
Prima facie, à vista da urgência, o Tribunal tinha, aliás, uma base para receber, si et in quantum, as alegações por fundadas: a idoneidade pessoal do impetrante, assim votei, fundado nas disposições constitucionais transcritas e não fui convencido de erro, nem pelas razões do acórdão, nem pelos argumentos que tenho visto produzir em favor da sua doutrina.
Os membros da antiga família dinástica do Império não estão sob a proteção dos princípios constitucionais, porque foram banidos do território nacional, pelo Decreto nº 78-A, de 21 de dezembro de 1889, e este decreto continua em vigor: eis, em última análise, o argumento oposto à concessão do habeas corpus.
A Constituição é, nos países de lei escrita, a fonte de todo o direito, de todos os poderes e faculdades dos órgãos da soberania.
Juridicamente, não há direito pré-constitucional ou extra-constitucional: lei são atos emanados do poder constituído para legislar, e os atos aos quais a Constituição comunica expressamente força e vigor; não há leis subentendidas, presumidas no regimen constitucional, senão leis regularmente promulgadas pelo poder constituinte ou pelo legislativo ordinário.
Assim o entendeu a constituinte, quando se julgou obrigada a declarar no art. 83:
“Continuam em vigor; enquanto não revogadas, as leis do antigo regimen, no que explicita ou implicitamente não for contrário ao sistema de Governo firmado pela Constituição e aos princípios nela consagrados”.
O intuito desta disposição foi dar eficiência as leis anteriores, que a perderiam pelo simples fato da promulgação da Constituição; dando-a, porém, a Constituinte ressalva logo expressamente a cláusula restritiva, que subordina a vigência dessas leis à condição de conformidade às regras explícitas e aos princípios implícitos da lei fundamental.
Era, aliás, desnecessária esta cláusula; assim como, se a Constituição não lhes transferisse força, semelhantes leis não poderiam vigorar; igualmente, revigorando-as, a Constituição não lhes daria - salvo expressa disposição em contrário - maior força do que a das leis ordinárias da República, às quais ficavam equiparadas.
Para evitar, porém, dúvidas, julgou a Constituinte prudente consignar a condição, ficando por isso expressa, a respeito das leis anteriores, que esta assembléia entendeu manter em vigor, a condição de concordância com os seus princípios.
Ao mesmo tempo que assim procedia, a respeito das leis do Império, a “Constituinte aprovava a emenda da comissão eleita para dar parecer sobre o projeto da Constituição elaborado pelo Governo provisório”, que propunha a supressão, por inoportuno, do art. 2º, das disposições transitórias desse projeto, assim formulado:
“Os atos do Governo provisório não revogados pela Constituição serão leis da República”.
Ao passo, pois, que as leis do antigo regimen, consoantes ao espírito do novo, eram mantidas pela Constituinte, não obtinham a mesma ratificação as do Governo provisório, ainda que harmônicas com os princípios constitucionais; a apreciação destas foi deixada ao critério do legislador ordinário.
Se, em relação aos atos da ditadura, não repugnantes à Constituição, que é o que significa a cláusula: “não revogados pela Constituição”, julgou a Constituinte que devia fazer esta reserva, seria completamente descabido presumir que ela deixou em vigor atos evidentemente contrários aos seus mais claros e precisos preceitos.
Sustenta-se, entretanto, que o pensamento de manter em vigor o decreto de banimento da antiga Família Imperial foi manifestado pelo legislador constituinte com a junção da palavra judicial ao termo banimento, na parágrafo 20, do art. 72, em que se declara “abolida a pena de galés e a de banimento judicial”.
Esta interpretação é contrária aos mais elementares princípios da hermenêutica, que repelem em absoluto a admissibilidade de um princípio excepcional de uma idéia restritiva, e, o que mais é, restritiva da garantia dos direitos e liberdades em um regimen republicano, por simples inferência ou remota ilação, tirada do emprego incidente de um termo em certo dispositivo de lei.
Tal pensamento, oposto à regra comum, constituiria o que, na doutrina jurídica, se chama o jus singulare: “quod contra tenorem rationis propter aliquam utilitatem auctoritate constituentium est”; e, se de uma norma expressa de direito singular, não é lícito deduzir conseqüências: “quod contra rationem juris receptum est, non est producendum ad consequentia”, intolerável é que se presuma o próprio direito singular, por ilação, por mera conseqüência.
Não é o princípio do art. 72, parágrafo 20, que ampara o direito dos membros da Família de Bragança de vir ao Brasil e de permanecer no país. Só pessoas absolutamente alheias à disciplina jurídica, à simples técnica do direito, poderiam ter feito um dia aplicação deste texto a semelhante caso: o que ai se aboliu foi a pena de banimento: e pena, em direito, significa necessariamente sanção civil ou criminal imposta por violação da lei; mas, se não é este princípio que o apoia, com menos razão ainda se lhe opõe o predicado judicial, ligado ao substantivo banimento.
A junção deste predicado é, em primeiro lugar, um pleonasmo: na palavra pena de que eram, por sua vez, predicados as locuções de galés e de banimento, já estava compreendida a noção de ato ou decreto judicial, pois que não é lícito admitir a idéia de galés ou de banimento como pena civil, disciplinar ou administrativa. Mas, se fosse razoável dar ao adjetivo a força que se lhe atribue, justamente pelo fato de ser um pleonasmo, pelo mesmo motivo se poderia concluir que, independentemente do emprego desse vocábulo, só por efeito da parte do artigo que extingue a pena de galés e a de banimento, o legislador constituinte entendeu dever deixar facultado ao Poder Público o direito de impor as galés ou o banimento a qualquer indivíduo, por motivo de ordem e ato de alta polícia: a conclusão inferida, para o caso do banimento, do seu predicado judicial, resultaria para o banimento e para as galés, da palavra pena. E teríamos assim consagrado, como lei ordinária neste regimen, o direito de decretar as galés e o banimento por ato discricionário do Governo...
Sendo, porém, um pleonasmo, qual a intenção do legislador, quando inseriu esse adjetivo no texto constitucional? Não está por fazer, ao contrário, foi já exuberantemente exibida por quem com mais autoridade e competência tem perlustrado todos os escaninhos da lei constitucional, a prova de que a concisão de linguagem está longe de ser uma virtude dela.
Atentando para a história do instituto do banimento, vê-se que o seu duplo caráter foi sempre objeto de uma definição clara, na técnica jurídica: ao banimento político, muito comum em outros tempos, se opôs o banimento judicial, como pena; da diferenciação lógica resultou a diferenciação técnica; e esta firmou por sua vez o hábito de dizer que, nos países cujas instituições permitem o emprego do banimento político, se conservou para distinguir; e nos outros foi mantido para excluir.
A locução banimento judicial ficou, por isso, consagrada como fórmula de uma espécie no gênero, forma que se emprega para a separar da outra espécie ou para significar que a outra não existe.
Porque, então, se referiu o legislador constituinte a banimento judicial, no texto que suprimiu a relegação do nosso direito?
Em primeiro lugar, porque, como instituto legal, nunca tivemos outra espécie de banimento, senão o penal, admitido em princípio, embora não decretado particularmente para qualquer crime, pelo código de 1830, e inflingida, contra o crime de atentado às instituições, pelo de 1890; em segundo, porque, tratando de suprimir, o legislador não precisava empregar expressão mais compreensiva, em um regimen político que, baseado sobre as idéias fundamentais da liberdade individual, da igualdade dos indivíduos perante a lei e da limitação constitucional da competência e das faculdades dos poderes políticos, é incompatível com a investidura, no poder executivo e no legislativo, de qualquer direito discricionário sobre o gozo das garantias enumeradas na Constituição.
A falta de concisão na forma da lei constitucional, o uso freqüente da locução banimento judicial, na linguagem jurídica, o intuito de suprimir aquele que existia entre nós, a desnecessidade de aludir ao que de nenhum modo poderia subsistir, explicam, pois, cabalmente, a existência do adjetivo no texto constitucional.
Se estas últimas razões não explicassem, porém, seria preferível deixar à conta de redundância de linguagem o encontro dessa palavra na lei, a afirmar a tese de que este simples vocábulo encerra o poder extraordinário de criar uma exceção no direito, uma exclusão da comunidade jurídica (e que exclusão: a forma contemporânea da aquae et ignis
interdictio!) contra o conselho salutar do clássico brocardo: odiosa restringenda.
A disposição do parágrafo 20 da art.72 é permanente; está na parte da Constituição destinada a reger definitiva e invariavelmente o funcionamento dos poderes públicos e os direitos dos cidadãos brasileiros. Se, pois, o adjetivo “judicial” fosse aí incluído para assinalar que apenas o banimento penal era suprimido, a conseqüência lógica deveria ser, não que o ato de banimento da família dinástica, mas que o banimento, como medida geral, como faculdade ordinária do poder público, no interesse da ordem, ficou de pé; esta conclusão, entretanto, não se ousou afirmar. O poder extensivo dado à interpretação do formidável adjetivo vai até o ponto preciso para compreender o decreto do governo provisório, mas para aí; o alcance do raciocínio é circunscrito a uma parte limitada de sua aplicação lógica; cria-se, por inferência, uma exceção para, depois, distinguir dentro dela e, o que é mais, a parte de eficiência que se lhe atribue não é, como fôra curial entender, em se tratando de disposição permanente, para vigência futura e genérica, mas tem a singularidade
de volver sobre si mesmo, para o passado, colhendo aí um caso único e concreto de aplicação: depois do que... paralisa como por encanto. De forma que depois do peso imenso
que se lança sobre o valor insignificante de um adjetivo, para conter tão graves conseqüências, dá-se-lhe a feição de predicado transitório... de um objeto permanente.
É possível admitir no espírito do membro da Constituinte redator daquela cláusula, a influência, a sugestão dessa idéia, no ato de a redigir: não há, entretanto, regra de hermenêutica, nem conselho de sã compreensão de idéias escritas, que permita aceitá-la, como pensamento determinante da Assembléia Constituinte.
E, se isto se desse - assinale-se por último - dever-se-ia concluir que o banimento da antiga Família Imperial é um fato irrevogável: mantido expressamente pela Constituição, ficaria sobranceiro ao Poder Legislador ordinário; incluído na sua parte permanente, estenderia seus efeitos, tanto que existisse a Constituição; acarretando a perda da nacionalidade, por ato constituinte, não haveria poder ordinário capaz de a devolver.
E improcedente o argumento que aponta, como interpretação autêntica do texto constitucional, o ato da Câmara dos Deputados pelo qual se deixou de aceitar, como objeto de deliberação, o projeto apresentado pelos representantes Caetano de Albuquerque e Amphilophio de Carvalho, propondo a supressão do banimento. Se em qualquer organização política a espécie de interpretação, a que se dá o nome de autêntica, é, com ponderosíssimos argumentos, considerada por jurisconsultos de universal conceito, uma concepção injurídica; no regimen presidencial, de separação de poderes, não há que duvidar da sua absoluta impropriedade; se a lei anterior é inteligível, o que ela diz tem toda eficiência, segundo a forma porque é entendida, e vigora até a lei nova, sobre todos os casos ocorrentes, ainda os julgados depois da nova lei, promulgada a título de interpretativa; se não é inteligível, a lei nova não interpreta, cria direito, porque tanto vale não conter preceito, como conter um preceito que não se entende.
No primeiro caso, a lei nova, que alterasse a inteligência dada à antiga, importaria uma revogação retroativa; no segundo, conteria uma regra nova, inaplicável ao passado.
Admitido, porém, o conceito, o ato da Câmara estaria longe de valer por interpretação autêntica, não obstante ser o Congresso que sucedeu a Constituinte, composto dos mesmos membros desta, porque a deliberação foi só da Câmara, sem a participação do Senado; e, ainda mais, porque, para o direito, a identidade dos membros das duas corporações não importa unidade da autoridade legislativa, que é condição de interpretação autêntica: ejus est interpretari cujus est condere leges.
À Câmara, que não podia mais “fazer” a lei constitucional, falecia poder para interpretá-la autenticamente.
Funcionando, ordinariamente, o ato da Câmara vale como ato de legislatura ordinária; e, como tal, nem interpreta autenticamente, nem possue, como interpretação, valor maior que o de um argumento de autoridade. A lei, votadas pelas duas Casas do Congresso, está sujeita à anulação judiciária, por inconstitucionalidade, e são muitíssimos os casos em que este Tribunal a tem fulminado; a força da autoridade jurídica do legislador está, naturalmente, em plano inferior à da sua autoridade legal...
Autêntica se pode dizer a interpretação da Constituinte expressa no voto que repeliu a aprovação dos atos do Governo Provisório.
Não apóia a doutrina da vigência do banimento o argumento das restrições jurídicas ao direito de liberdade, que resultam do poder punitivo do Estado e da condição de capacidade para o gozo dos direitos civis; carece até de propriedade dar a estas contingências naturais de equilíbrio jurídico a denominação de restrições do direito de liberdade; elas são condições ordinárias deste direito, compreendidas, por definição, em seu conceito; e estão além disso, consagradas na própria Constituição; assim o artigo 34, nº 23, quando comete ao Congresso a atribuição de legislar sobre o direito civil e criminal da República, confere ao legislador ordinário o poder de estatuir sobre o Estado e capacidade das pessoas naturais e de prescrever penalidades - matérias que fazem universalmente objeto de lei civil e de lei penal: e o art. 72, nos parágrafos 13, 14, 15, 16, 19, 20, 21 e 22, consagra por diversas formas o princípio do poder repressivo da sociedade sobre os indivíduos que violam a ordem jurídica. Se, pois, estes limites à “atividade” do indivíduo fossem limites à liberdade - que não são, e sim condições do seu exercício - eles estariam expressamente ressalvados pela própria Constituição: seriam limites constitucionais; não poderiam servir de argumento a favor da exclusão, “a priori”, de todo o direito de segurança e de liberdade, que tem por base os direitos de estabelecimento e de locomoção, para um grupo de indivíduos.
Para este caso, se havia necessidade de uma providência, excepcional, o juiz único da necessidade, árbitro exclusivo da exceção, era a Assembléia Constituinte; e esta nem a decretou em termos expressos - o que se fazia mister, nem manifestou implicitamente a idéia, o que, aliás não bastaria para a criação de um direito singular.
O direito de exceção, de alta polícia, não se infere, não se presume, quando muito, se o poderia considerar implicitamente instituído, pela implantação do regimen em que se fosse forçoso considerar, como condição jurídica, ou de fato, da sua existência o banimento da Família Imperial; que não é condição jurídica, di-lo o simples bom senso, e que não é condição de fato, demonstra-o a permanência de membros de famílias destronadas em muitos países, a opinião geralmente sustentada de que o Congresso tem competência para revogar a medida e o acerto de que poderia, sem risco para as instituições, decretar desde já a sua revogação.
A providência do art. 7, das disposições transitórias, é uma medida nova, adotada pela Constituinte sem nenhuma relação com o decreto nº 78-A, de 1889, ao qual não se refere; não revoga nenhum dos artigos deste: a pensão instituída em favor de D. Pedro de Alcântara poderia quando muito, ser tida por substitutiva do pecúlio que lhe foi oferecido nos termos daquele decreto.
Não vejo em que este dispositivo contribua para dar força à doutrina da vigência do banimento.
Convencido, por estes motivos, da insubsistência do decreto de 1889, concedi a ordem de habeas corpus, para que se pedissem esclarecimentos ao Governo sobre seus intuitos em relação ao paciente, e outras quaisquer informações que habilitassem o tribunal a julgar dos direitos do paciente em face da Constituição e das leis vigentes.
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