Dona Isabel e o Fim do Império
Leia o texto de Nelly Martins Ferreira Candeias acerca da Abolição da Escravatura e as problemáticas sócias ocasionadas pelo descaso republicano.
Os planos de assistência aos libertos que a Princesa Dona Isabel arquitetou foram simplesmente ignorados pela república. Pouco mais de um ano depois do 13 de maio de 1888, o pequeno grupo de republicanos, acompanhados de militares descontentes, destronava Dom Pedro II. Endossados pelos ricos fazendeiros descontentes, este grupelho instaurou um novo governo que sempre tratou o negro de forma indigna e desrespeitosa, colocando sobre este povo a culpa de não mais tê-los como objeto de trabalho. Os reflexos desta descriminação covarde são sentidos até hoje, fazendo com que o assunto seja sempre atualíssimo.
"ISABEL E O FIM DO IMPÉRIO
Nelly Martins Ferreira Candeias
Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon nasceu no Rio de Janeiro, em 29 de julho de 1846 e faleceu em Eu, na França, em 14 de novembro de 1921. Filha do Imperador D. Pedro II e da Imperatriz Dona Teresa Cristina, a Princesa Isabel exerceu a regência do Império do Brasil durante três períodos. Foi a primeira Chefe de Estado das Américas e uma das nove mulheres a governar uma nação durante o século XIX.
Ao assinar a Lei Áurea em 13 de maio de 1888, a Princesa Isabel extinguiu a escravidão no Brasil atendendo a forte apelo da consciência nacional. Era chegado o momento para ser tomada aquela medida. A questão provocava a troca de gabinetes. Os cativos fugiam em massa apoiados pela consciência popular.O Exército deixara de assumir o papel de capitão-do-mato e o trabalho escravo tornou-se indesejável, frente à concorrência da mão-de-obra imigrante, menos dispendiosa e mais qualificada. Ao libertar os escravos, a monarquia e a Princesa Isabel, a Redentora, voltaram ao imaginário da Nação e a alegria do povo traduzia-se em comemorações festivas.
Mas nem todos ficaram contentes, como acontece com os gestos de grande efeito. A abolição prejudicara os proprietários de escravos de regiões econômicas politicamente estratégicas como a do Vale do Paraíba, para os quais nenhuma indenização foi cogitada. Mesmo os barões imperiais desampararam politicamente a causa monárquica, passando a apoiar o ideário republicano. Por outro lado, intensificaram-se as intrigas que visavam a denegrir o Terceiro Reinado, agravado pelo fato de a herdeira do trono de D. Pedro II ser mulher. Naquela altura do século XIX, ainda prevalecia no Brasil a idéia de que as mulheres deveriam ser educadas apenas para serem esposas e mães, limitando-as à culinária, aos bastidores e às agulhas e bloqueando-lhes o acesso aos ensinos secundário e superior. É de salientar que, ao contrário das expectativas feministas da época, a Constituição Republicana não concedeu o direito de voto a mulheres, tão arraigados estavam aqueles preconceitos.
O exílio da Família Real
“Viva a República”. Extinta a monarquia em 15 de novembro de 1889, o chefe do Governo Provisório republicano, Marechal Manoel Deodoro da Fonseca decretou em ato solene, no dia 16, a deposição da dinastia imperial e a extinção do sistema monárquico representativo. E fixou a partida da família real para as duas horas do dia seguinte.Assim escreveu a Princesa Isabel em Memória para meus filhos: “no dia 16 às duas horas da tarde chegou a Comissão do Governo Provisório com uma mensagem a Papai exigindo sua retirada para fora do país (...) A idéia de deixar os amigos, o país, tanta coisa que amo, e que me lembra mil felicidades, fez-me romper em soluços. Nem por um momento desejei uma menor felicidade para minha pátria, mas o golpe foi duro”.Da carta assinada por D. Pedro II, no dia 16 de novembro e dirigida a Rui Barbosa, constou: (...) resolvo, cedendo ao império das circunstâncias, partir com toda a minha família para a Europa, deixando esta Pátria de nós estremecida, a qual me esforcei para dar constantes testemunhos de entranhado amor e dedicação durante quase meio século (...)”
Pressionada pelos acontecimentos, a família imperial partiu para o exílio sem saber o futuro que a esperava. Ainda no porto, um oficial disse à Princesa: “Vossa Alteza compreende que esta transformação era necessária”, ao que ela lhe responde: “pensava que se daria, mas por outro modo; a nação iria elegendo cada vez maior número de deputados republicanos e então, tendo a maioria, nos retiraríamos”.
Na madrugada do dia 17 de novembro de 1889 teve início o embarque da família imperial no navio Parnaíba e a transferência para o navio Alagoas, acompanhado de perto pelo Riachuelo, enquanto em águas brasileiras. Diz Raul Pompéia, “culpa, tristeza e mesmo certa vergonha. Em vez da luz forte do sol, temos o escuro da noite, em lugar da recepção calorosa, a partida solitária, sob olhares escondidos”. Assim seguiram para Portugal, levando “a mais saudosa lembrança”, aqueles que, a partir de 1808, transformaram uma colônia adolescente numa poderosa Nação, evitando a fragmentação do território conquistado, como ocorreu no oeste do continente. Sem a família real, o Brasil teria se transformado num conjunto de países muito menos poderosos.
Omissões históricas, preconceitos e discriminações
Não se pode dizer que o Brasil tenha sido o último país a erradicar a escravatura, a não ser que se considere apenas as Américas no século XIX.
Em entrevista publicada no “Caderno Idéias” do Jornal do Brasil, em 2001, o canadense Paul Lovejoy, professor da Universidade de York, em Montreal, pesquisador do Atlas Histórico da Escravidão, comentou que a Nigéria, de onde vieram muitos cativos para o Brasil, libertou os escravos nos anos 30 do século XX. Outros países, como a Arábia Saudita e a Mauritânia, eliminaram a escravidão por volta de 1960. De acordo com o depoimento de Pierre Verger, famoso fotógrafo e escritor francês (Fundação Pierre Verger), os próprios africanos atacavam aldeias no interior da África, marcando nos prisioneiros as iniciais do comprador com ferro incandescente.
Traficantes africanos riquíssimos, como portugueses, espanhóis, franceses, ingleses e dinamarqueses, negociavam o preço dos escravos e operavam em navios tumbeiros. Os mais ricos utilizavam-nos em suas propriedades africanas.
Alberto da Costa e Silva, ex- presidente da Academia Brasileira de Letras e embaixador na Nigéria, o maior africanólogo em língua portuguesa, revela peculiaridades e fatos históricos de uma África desconhecida, relatando que muitos escravos africanos pertenciam a reis e aos grandes do Daomé, reino africano situado na África Ocidental, cujo regime de trabalho pouco diferia do brasileiro. Diz também que durante os séculos da escravatura e nos primeiros anos seguintes à abolição, o Oceano Atlântico transformou-se num largo e comprido rio, tendo como margens o Brasil e a África ocidental. A cultura africana passou a ser um dos alicerces da cultura brasileira, exigindo o estudo dos resultados sociais da aproximação histórica das duas margens continentais desse grande rio.
Por ser injusta e pouco democrática a distância social entre o Brasil negro e o Brasil branco, é natural que o imaginário do povo sobre a escravidão contenha distorções ideológicas. Torna-se necessário interpretar, com metodologia séria, a origem dos preconceitos e das discriminações existentes em nosso meio, para então legitimar as informações registradas nos livros didáticos que muitas vezes os omitem. Queixas de distorções, omissões e mentiras históricas têm sido freqüentes.
Em matéria publicada especialmente pela Folha de São Paulo, os jornalistas Leandro Naloch e Nei Lopes referem-se aos enredos maniqueístas dos temas das escolas de samba que desfilam no carnaval, observando que neles os afrodescendentes são sempre caracterizados como heróis libertadores e todos os outros como seus opressores. Menos divulgada é a notável contribuição do negro para a história do Brasil e sua miscigenação na formação da nacionalidade brasileira.
Os dois Brasis
É enorme a distância entre o Brasil moderno dos brancos e o Brasil arcaico dos negros. Diz Norberto Bobbio que “ao lado de um estado de poder visível, há sempre um estado de poder invisível que passa despercebido”.
Cento e vinte anos depois da abolição da escravatura, quais são as condições socioeconômicas da comunidade negra no Brasil? No momento em que tanto se fala das políticas públicas e dos sistemas de cotas, basta entrar na sala das grandes universidades brasileiras, públicas ou privadas, para observar grave problema ainda não resolvido pela república brasileira.
Estudo realizado na Universidade de Brasília mostra que os professores brancos representam 99 % do quadro das universidades públicas brasileira, país em que os afro-descendentes representam 47% da população brasileira. Muito embora haja visíveis avanços no controle de preconceitos e discriminações de raça, particularmente após a Constituição de 1988, os ideais dos direitos humanos e da cidadania estão longe de ser alcançados. O banco de dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que utiliza o cálculo do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH/PNUD) , assim como os dados provenientes da Fundação João Pinheiro, permitem comparar as condições sociais dos negros entre 175 países. O IDH dos brasileiros negros colocasse na 107ª posição em 175 nações, equivalendo a El Salvador e China, ao passo que os brancos brasileiros ocupam a 46ª posição nesse mesmo conjunto de nações.
Nas estatísticas apresentadas pela Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios – PNAD 2001, o rendimento médio familiar, per capita, dos negros de todo o Brasil, foi de 1,15 salários mínimos, ao passo que o mesmo índice, entre os brancos, foi de 2,64 salários mínimos. A taxa bruta de escolaridade entre os negros brasileiros foi de 84% e a dos brancos de 89%. A taxa de alfabetização das pessoas maiores de 15 anos também apresentou variação positiva para o contingente branco (92,3%) - mais de 10 pontos percentuais superior ao ocorrido entre os negros, cujo índice de alfabetização foi de 81,8%. Lamentavelmente, no que tange ao indicador da esperança de vida ao nascer para o período 1990-1995, a esperança de vida ao nascer foi de 70 anos para os brancos e de 64 anos para os negros.
Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2001, apenas 15,8% dos negros puderam concluir curso de graduação, enquanto entre brancos esse índice atingiu 53,6%. No período entre 1992 e 2001, o número de crianças e adolescentes negros no mercado de trabalho foi duas vezes maior do que o de brancos, impedindo, obviamente, a ascensão social pela educação. Agrava-se a condição dos brasileiros negros pelo insignificante acesso a cargos públicos com poder de decisão. Nas eleições de 1999, apenas 15 parlamentares negros foram eleitos entre as 513 cadeiras da Câmara do Brasil (2,8%).
Racismo como tema global
O conceito de direitos humanos tem sido apoiado por convenções, tratados e ratificações. Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembléia Geral da ONU e assinada pelo Brasil na mesma data, ainda sob impacto das atrocidades cometidas durante a 2ª Guerra Mundial, comprometeu-se a “promover os direitos humanos sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. Esse documento foi traduzido para 360 idiomas.
Como tema global, publicou-se a famosa “Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial”, assinada pelo Brasil em 1966 e ratificada em 1968, com decreto assinado em 1969. Nela se expressam as liberdades fundamentais
para todos, sem discriminação de raça, sexo, idioma ou religião. Um dos principais objetivos dessa Convenção é criar um povo unido, sem classificar as pessoas em função das raças ou das raças resultantes. Como aqui se sugere, é preciso estudar cientificamente o que ocorreu com os negros no século XIX, durante a Monarquia, e
no século XX, na vigência da República. Só assim, e em termos do racismo brasileiro, ainda vigente em certos redutos do existir brasileiro com suas omissões históricas, preconceitos e discriminações, estaremos contribuindo para a igualdade dos direitos humanos, dentro da teoria democrática contemporânea, expressa na Constituição Cidadã de 1988.
Abraço à Redentora
Foi esse o objetivo da Princesa Isabel ao abolir a escravatura no dia 13 de maio de 1888, quando afirmou preferir perder o reino do que não libertar os escravos. Como grande estadista, não desconhecia as conseqüências do ato que realizara. Ausente, o Imperador enviou-lhe um telegrama com as palavras “Abraço à Redentora”.
Nas vésperas do centenário da Independência do Brasil, em 3 de setembro de 1921, o Decreto no. 4.120 do Presidente Epitácio Pessoa, em ato de elevada justiça, revogou o banimento da Família Real e autorizou a trasladação dos despojos de D. Pedro II e D.Tereza Cristina . Estes chegaram ao Rio de Janeiro, em janeiro de 1921, a bordo do couraçado São Paulo, para serem depositados na Catedral de Petrópolis.
D. Isabel faleceu em novembro desse mesmo ano. Seus restos mortais e os de seu marido, Conde D’Eu, foram transportados pelo Barroso, nau capitânea da esquadra brasileira, que aqui chegou no dia 7 de julho de 1953.
Foram tempos difíceis. A Princesa Isabel conviveu com o predomínio agrário do tempo e declínio dos escravagistas marginalizados pelo golpe fatal da Abolição. Enfrentou a ideologia republicana dos adversários, a extinção da monarquia e as tristezas do exílio.
Isabel Cristina Leopoldina Augusta Miguela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon é um ícone dos preconceitos e das discriminações de gênero e de racismo no Brasil, que a Constituição Cidadã de 1988 atenuou, mas não conseguiu ainda eliminar."
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